quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Estrela

[Sequela da saga do escravo e da imperatriz iniciada com a palavra "Liberdade".]

Estrela, s.f. Astro que brilha com luz própria , que cintila. || Designação de vários artifícios de fogo. || Fado, sorte, fortuna, destino por alusão à pretensa influência dos astros nos acontecimentos da vida dos homens. || Pessoa, ideia pela qual nos norteamos; guia; alvo; farol.
~Para a Marta, que me fez um pedido que não pude deixar de adaptar à criança que este personagem tem dentro de si. “faz sobre uma criança numa regiao remota do porto, quase como se fosse uma aldeia, pensar q os baloes de sao joao sao estrelas”~

Estrela.
Olhas para o céu, azul carregado, azul celeste, lusco-fusco que já não te lembravas de ver (talvez nunca tivesses visto), se não em sonhos. É o céu, pensas e inspiras, o teu peito cheio de ar, húmido, fresco, livre. Há pontos minúsculos lá em cima, brancos, reluzentes. Estrelas e estrelas criadas, quiçá as últimas pelas tuas mãos (e não podes deixar de pensar como algo feito por ti, tão desajeitado e desprezado, propriedade de outrem, pode tornar-se nalgo tão belo e mágico) quiçá pelas dela (tão bela, tão etérea, tão…tão tudo, as suas mãos pequenas, brancas, deslizando pelo papel colorido com aquela graciosidade infantil que ainda não abandonara -jamais poderia - o seu ser), quiçá de outros (nunca como ela. Nunca como tu). E ainda a subir, a subir, esvoaçando com a brisa, raspando nas árvores, alguns num declínio iminente, pontos amarelos, ofuscantes, com labaredas incandescentes a darem asas a papel, numa tradição fascinante da qual apenas ouviras falar.
“São estrelas”, respondera-te ela, olhos semicerrados de quem recorda com melancolia, mãos alisando o carmim que vestia a sua - vossa boneca.
“Estrelas?” perguntaras, céptico, enquanto olhavas os rapazes, decerto camponeses, que se afastavam em risos e gritos do outro lado do muro que a separava dos demais mortais, nas mãos bolas gigantes de papel semelhantes aos enfeites que por vezes adornavam as ruas e casas em alturas de celebração. Ela olhara-te então, daquela maneira, quase esbugalhada, como se te estivesse a tentar decifrar no meio da confusão que às vezes o mundo era para ela. E franziras o sobrolho, tentando ocultar a vergonha de mais uma vez pareceres saber menos do que aquela criança com aborrecimento. Falharas, obviamente, e o seu ar intrigado depressa se transforma num de compreensão e sabes que ela acabou de decidir algo mas não adivinhas o quê até, nessa noite, ela invadir mais uma vez o teu quarto, folhas vermelhas, azuis, verdes, douradas e cor de luar firmemente seguras contra o seu peito. “Estrelas”, dissera mais uma vez, com um sorriso complacente enquanto, com arame, as fazia ganhar forma até se tornarem redondas. Demoraras um pouco até a conseguires imitar, não importa que a tua habilidade seja apreciada em todo o palácio, ao pé da dela será sempre rude, e mais ainda a perceber que iria haver fogo pelo meio. Quase ris, mas controlas-te a tempo, e ainda bem ou esperar-te-ia um mar de perguntas, ao recordar o pânico que te invadira quando a tua pequena companheira tentara incendiar, ou assim parecera, as vossas obras-primas. E depois…depois a magia. Aqueles pontos a levantarem voo e, como se combinado, o canto dos grilos e das cigarras, o som da madeira a bater na pedra, da água a correr e eras de novo uma criança, maravilhada pelos truques de salão que aprendias às escondidas nas senzalas, quando a calada da noite permitia um pequeno trago de felicidade nas vossas vidas de escravidão. Afastas esses pensamentos com um sacudir de ombros que faz esvoaçar os teus cabelos cor de ouro, outrora tão odiados pelo sofrimento que te haviam trazido mas que aprenderas a aceitar porque ela te diz que são belos e que, por a fazerem feliz, te fazem feliz também, e sentas-te junto da tua menina – imperatriz.
“Não sabia como se faziam, estas estrelas.” Comenta, olhos fixos naqueles pontos cintilantes, mas há algo no seu rosto que é grave e sentes frio, como se o que ela sentes passasse também para ti. Não precisava de te contar, conseguias imaginar a história desde que a sua voz adquirira aquele tom distante, de solidão que não pode ser camuflada. “Só as via daqui.” Imperatriz, escravo, tão diferentes mas tão iguais. Ela, que nunca pudera ver para além das muralhas da classe social, da ostentação, da beleza, do poder que para se manter puro se afastava daqueles que, sujos, o podiam de alguma forma contaminar. E tu, que nunca puderas ver para além das tuas grades, a quem nunca te tinham dado o direito de sonhar, a quem o prazer próprio era proibido e cuja existência servia unicamente para agradar quem te possuísse. Ironia era a palavra que te vinha à mente e que deixava um sabor amargo na boca.
E no entanto…ali estavam os dois, tu e ela, a ver aquele espectáculo que parecia saído de um conto de fadas, um espectáculo que ela tinha criado para ti, porque queria que soubesses, que conhecesses. Que não perdesses aquilo que ela também não tivera a oportunidade de experienciar até um ancião mais benevolente saciar a curiosidade da sua princesa.
“São estrelas. Para ti.”Sentes uma mão apertar a tua, suavemente, um pulsar (será teu? Será dela?) a chegar ao teu coração e sabes que ela te compreende, que naquele momento de silêncio, os teus olhos húmidos de emoção perante aqueles pirilampos fabricados, ela escuta o teu obrigado e te responde com a única coisa que sempre te deu: amor.
“Não são estrelas, criança tola.” Ela afasta-se um pouco, os seus longos cabelos a tocar o chão de madeira onde estão sentados, mas a sua mão sem largar por um único instante a tua. “São balões.” Continuas, a tua voz num sussuro embalado pelo vento. Pelo canto do olho sabes que ela te observa, primeiro intrigada, mas depois no seu rosto forma-se também um sorriso e a sua cabeça volta a aninhar-se no teu ombro. Voltas a erguer os teus olhos para o céu. Por mais belas que fossem, nenhuma delas se poderia comparar à estrela que brilhava ao teu lado.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Doll

Caminhas, passos arrastados e sem graça, mas oh! Tão graciosos no teu declínio. O teu respirar são garras que te rasgam o peito, imaculado, escondido, em cetim bordado, o teu palpitar são trovões solitários, tão silencioso que não se poderia ouvir.
Sentes-te presa, as tuas asas- não- nascidas algures para trás, e essa dor, tanta dor, que teima em não passar. Corres, os teus passos nem um segundo adiantados, e ofegas, a tua máscara impávida, serena. Não tropeças, quebrar-se-ia o encanto, mas estás perdida, confessa!
És uma marionete com vontade, olhos de porcelana tão vivos no seu vazio; uma existência antagónica, impossível mas real, um enlace de opostos que foi criado sem razão.
Nascestes, se a isso podes chamar vida, e continuas, sem saber, à procura da tua morte.
“Ó doçura da vida: /
Agonizar a toda a hora sob a pena da morte /
Em vez de morrer de um só golpe”
(SHAKESPEAR, William)

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Merrow

Acendes o cachimbo, nuvens fofas e cinzentas que se soltam e fazem cócegas sob o teu nariz, mesmo antes do teu bigode. As ondas vão e vêm, marés que nunca se cansam de cantar o mesmo fado, umas vezes alegres, outras em segredo, por vezes num choro que se torna grito, fazendo coro aos trovões nos dias de tempestade. E vão e vêm, iluminadas pelo sol ou pela luz do farol, quando a noite já caiu ou o dia é de nevoeiro.
Aconchegas-te melhor no cadeirão de madeira, velho e enrugado como tu, não tivesse assistido ao passar dos anos, enfrentando o sol escaldante, a humidade, o passar do tempo e o uso de quem, como tantos nessa baía, nele encontraram repouso para os dias em que o mar não foi o caminho a seguir. Fechas os olhos por uns segundos, poderias até dormitar, embalado pelo cheiro a sal, a algas, a peixe que é tirado das redes gastas mas ainda firmes por mãos hábeis, por mãos inexperientes, rasgadas e calejadas pela vida de pescador, ou ainda macias e feridas de quem ainda aprende. Não importa. O tempo encarregar-se-á de as endurecer, de as tornar rijas. E de fazer o mesmo às suas almas.
Abres os olhos e, sem surpresas, encontra-la alguns metros à tua frente, demasiado longe para os teus olhos cansados distinguirem o padrão roçado do seu vestido mas não fazes o menor movimento para focares a tua visão. Sabes o seu destino, não é diferente de todos os outros dias, e não tarda irá estar a passos da casa caiada que chamas de lar. Caminha de forma desastrada, passos curtos, desengonçados, demasiado trôpegos para os seus cinco anos, quase seis. Passos de quem não está habituado a caminhar, passos dados por pés que não parecem ter sido feitos para andar sobre o solo, mesmo que este seja areia pálida, mais clara que qualquer outra que já tenhas visto – lágrimas cristalizadas choradas por aqueles que perderam os seus nas águas que as banham; lágrimas de quem voltou para os braços de quem amavam; lágrimas de quem as não pode voltar a pisar, enclausurados no fundo do mar; lágrimas de quem quer ficar; lágrimas de quem quer partir – passos de quem ainda está a aprender a como os dar. O seu cabelo está solto, está sempre, e uma brisa que não sentes brinca com os seus cabelos, emaranhando-os e enrolando-os em todas as direcções, indomável, perigoso, uma mancha negra que quase parece esverdeada e que se agita no ar; a sua pele, de um branco pálido, brilha sob os raios de sol, sem nunca se queimar, contrastando com o castanho- dourado dos irmãos que a seguem de longe, atentos, desconfiados, interrompendo as brincadeiras e algazarra sempre que alguém desconhecido para ela desvia o olhar. Não te prestam atenção, és como todos os outros moradores, és de confiança. És inofensivo.
Fumas o teu cachimbo e respondes com um acenar de cabeça aos seus cumprimentos respeitosos, de quem vê alguém mais sábio, mais experiente, e voltas a observá-la. Os seus olhos estão mais cinzentos hoje, um cinzento-escuro, que disfarça as manchas azuis e verdes que por vezes se sobrepõem, e sabes que uma tormenta se aproxima apesar do sol ainda brilhar e o céu estar limpo como num dia de Verão. Os barcos ainda não regressaram, talvez ainda não seja tarde demais, mas lamentas já as vidas perdidas. Saberá ela?
Os seus lábios estão entreabertos, pelo esforço e espanto, os seus pequenos braços abertos para lhe dar mais equilíbrio, para os poder girar enquanto roda e cai, com a felicidade de quem vê tudo pela primeira vez, para quem tudo é novidade e cuja curiosidade não cessa; para quem ansiou tanto por ali estar que cada segundo não pode ser desperdiçado. Passa por ti sem se demorar, as suas sardas claras, quase invisíveis, pequenos grãos de areia que pintam o seu nariz e bochechas levemente rosadas.
Assistes ao momento em que os seus pés tocam as poças de água, em que um sorriso que depois se torna num riso mudo e em exclamações silenciosas de felicidade surge, no seu rosto. Nenhum som sairá da sua boca, nenhuma palavra será pronunciada por aqueles lábios que nasceram calados, como se soubesse segredos do mundo que não poderiam ser repetidos, como se a sua voz fosse demasiado para o comum dos mortais.
Ficam ali os sete, cinco jovens, um velho e uma criança, abraçada pela água e cortejada pelas gaivotas que esvoaçam ao seu redor.
Começas a assobiar, baixo e desafinado, uma velha canção de marinheiros. O teu chapéu é levado pelo vento que surge, do nada, e um trovão estala o céu. Fala de merrows e de magia. Fala de um príncipe e de um barco; fala de uma tempestade e de um salvamento; fala de amor e de morte; fala de barbatanas brilhantes que se tornam pés; de um coração cego por intrigas e de uma torre, uma torre alta, com vista para um abismo de rochedos que lutam contra as marés. Faz-se noite antes da hora, relâmpagos iluminam os céus e as gaivotas gritam, enquanto uma criança chora, a cada lamurio um trovão, a cada soluço uma onda que rebenta, furiosa, dorida, e ao longe, muito ao longe, na Ilha para a qual já ninguém sabe o caminho, uma torre solitária recorta a paisagem.
Os irmãos esperam, abrigados sob os telhados enquanto a população corre tonta, uns para casa, outros para a praia, procurando no horizonte os que ainda não chegaram. Só, sem notar a confusão, ela treme, encharcada. Continuas a assobiar. É uma música sobre merrows. É uma música sobre o povo do mar.


Merrow - sereia

quarta-feira, 19 de maio de 2010

See no Evil, Speak no Evil, Hear no Evil

Finges não ver o que se passa, mentira mascarada de sorrisos e medos, confiança simulada na qual te procuras esconder; uma redoma dourada, bela e polida, cheia de ar para camuflar o vazio. É um jogo perigoso, esse que jogas, criança perdida que vagueia entre futuros sonhados e desejos esquecidos. Por isso caminha, por entre bosques sombrios e espinhos de rosas. Continua, com pés rasgados e mãos sujas de sangue e de terra. Segue em frente, as tuas lágrimas são o teu trilho, o teu destino nada mais do que tu mesma. Fecha os olhos e diz que os teus cortes são culpa da cegueira; cerra os lábios e cala a tua vontade; tapa os ouvidos para que seja a surdez que te atraiçoa. Corre, inocente. Para os teus, o mundo é mais fácil assim.

domingo, 11 de abril de 2010

Porquê

Porquê? Porque é que a simples sombra de um sorriso nos consegue levar toda a razão?

Desabafos

Ando ansiosa por escrever algo.

Sinto um formigueiro, em mim, nos meus dedos, mas não sei sobre o quê, o que o provoca.
Talvez sejam ideias confusas, "marés" turbulentas, que se desfazem na imensidão do pensamento demasiado rápida para as poder apreciar, para a espuma - tudo o que delas resta - vir de encontro aos meus pés.
Está sol. O calor sufoca-me de uma forma agradável., Um abraço demasiado apertado mas que não deixa de nos confortar.
Talvez vá ver as verdadeiras ondas do mar. E talvez lá encontre um porto seguro que me permita encontrar o caminho até mim.



N.A: Algumas conversas têm um final imprevisível.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Ilusão

São como borboletas, toques suaves, toques fantasmas, que te embalam e confortam, cada um uma mensagem, cada um uma promessa. E fechas os olhos, não para não veres a luz que entra pelas janelas, sombras de rendas de cortinados floridos escolhidos para aumentar a ilusão; não para fingires que não há mais ninguém, que o jardim está vazio, impávido e ensolarado, como sempre achaste que devia estar; não para não veres a tristeza escondida que sabes existir no rosto de quem te conforta. Não. Fechas os olhos porque queres ser egoísta por uma vez na tua vida, porque queres fingir que acreditas e que vai mesmo ficar tudo bem, que não há mesmo porque te preocupares. Fechas os olhos porque queres ver um rosto diferente do que está tão próximo do teu.