domingo, 28 de março de 2010

Matemático

Não há nada de matemático na humanidade.
Não há leis claras, em que um processo leve a uma solução, que resolva problemas deixando claras as respostas e os restos e todas as décimas e centésimas e milésimas que precisas para chegares a um resultado que te contente. Não. A Matemática que encontras está nas excepções, nos casos raros que na tua vida parecem ser a regra geral, porque ninguém age como devia, ninguém tem um só papel, claro e definido em cada equação, soma ou outro qualquer cálculo. Cada ser tem vida própria, opinião própria, e um conjunto infinito de factores que tornam cada interacção única, inesperada, incontrolável.
E é ao veres esses pequenos detalhes no teu mundo, ao observares a caixinha de surpresas que somos e preparamos, que não deixas de pensar no quão perfeito isso é.


Não que isso torne nada mais fácil.

terça-feira, 23 de março de 2010

Perfeição

Há um riso abafado e um corpo contra o teu, próximo, muito próximo, calor que te faz encolher e contrair mais até te encaixares no seu peito, uma cabeça sobre a tua e ficam assim, sopro com sopro, até a vossa respiração ser uma só e ser o único som que se sobrepõe ao do teu próprio coração.
Não é preciso mais nada, palavras ou promessas, definições que nunca deviam existir pois não há um dicionário para a alma nem coração, e não te atreves a mexer, a sequer pensar em mais do que naquilo que sentes - porque é certo, tão certo - e fechas os olhos porque se isso não é amor, não sabes o que é.



Porque as palavras não são tudo e às vezes são tabu.
Parabéns... :)

segunda-feira, 22 de março de 2010

Memento Mori

Afastou as folhas caídas com os seus pés, estalidos secos no ar, e andou e andou, pombas sobre um banco, um ressonar suave de um qualquer velho adormecido. E que interessava?
Sobre si, o sol irónico brilhava, quente, traiçoeiro, negando as nuvens que viriam. E a velha de avental ajeitava as flores do dia, pontos coloridos entre a cera das velas. Ainda era demasiado cedo para se ser enterrado.
Deu um pontapé num ramo caído, mandando-o contra a pedra escura que se levantava do chão, um anjo esculpido de olhar enfadado e riso forçado de quem já há muito percebeu a ironia de quem por ali passa.
Olhou-o de baixo, firme e desafiante, ignorando a gargalhada calada da estátua.
Bateram-se asas e o velho acordou. Ao longe, uma mulher chamava, o tic-tic dos saltos por entre os murmúrios das campas.
Os lábios contraídos cerraram-se numa careta teimosa e o vento remexeu-lhe os cabelos, como que afastando-os para lhe analisar o rosto, nariz pequeno e empinado, sobrancelhas finas e franzidas em resposta à afronta e olhos, olhos tão claros e límpidos, mas de uma firmeza que previa tempestades. O riso parou.
Uma mão tocou-a, trémula de quem não vê mas adivinha, e o vento recolheu-se, mirando-a de mansinho e seguindo-a com assombro. Os murmúrios calaram-se e tornaram-se excitação contida, exclamações e perguntas que ninguém consegue bem perceber. E, enquanto era placidamente levada de volta, passos leves de quem voa, o velho sonolento quase jurou que nos olhos de pedra gravada se avivou uma luz de interesse.
Afinal, sorriu a estátua, não era todos os dias que alguém ouvia as preces dos mortos.

Memento Mori: “Lembra-te da tua mortalidade”