segunda-feira, 22 de março de 2010

Memento Mori

Afastou as folhas caídas com os seus pés, estalidos secos no ar, e andou e andou, pombas sobre um banco, um ressonar suave de um qualquer velho adormecido. E que interessava?
Sobre si, o sol irónico brilhava, quente, traiçoeiro, negando as nuvens que viriam. E a velha de avental ajeitava as flores do dia, pontos coloridos entre a cera das velas. Ainda era demasiado cedo para se ser enterrado.
Deu um pontapé num ramo caído, mandando-o contra a pedra escura que se levantava do chão, um anjo esculpido de olhar enfadado e riso forçado de quem já há muito percebeu a ironia de quem por ali passa.
Olhou-o de baixo, firme e desafiante, ignorando a gargalhada calada da estátua.
Bateram-se asas e o velho acordou. Ao longe, uma mulher chamava, o tic-tic dos saltos por entre os murmúrios das campas.
Os lábios contraídos cerraram-se numa careta teimosa e o vento remexeu-lhe os cabelos, como que afastando-os para lhe analisar o rosto, nariz pequeno e empinado, sobrancelhas finas e franzidas em resposta à afronta e olhos, olhos tão claros e límpidos, mas de uma firmeza que previa tempestades. O riso parou.
Uma mão tocou-a, trémula de quem não vê mas adivinha, e o vento recolheu-se, mirando-a de mansinho e seguindo-a com assombro. Os murmúrios calaram-se e tornaram-se excitação contida, exclamações e perguntas que ninguém consegue bem perceber. E, enquanto era placidamente levada de volta, passos leves de quem voa, o velho sonolento quase jurou que nos olhos de pedra gravada se avivou uma luz de interesse.
Afinal, sorriu a estátua, não era todos os dias que alguém ouvia as preces dos mortos.

Memento Mori: “Lembra-te da tua mortalidade”

2 comentários:

  1. Sabendo qual foi a inspiração para este oneshot… é algo quase indescritível. Lembro-me que o inicio foi contido, difícil; é bom ver o trabalho final. Sei que por vezes pode parecer não fazer sentido, mas são as imagens que a nossa mente forma quando sentimos algo intenso; e não devem ser alteradas. Afinal de conta os pensamentos são assim mesmo, uma torrente sem regras ou restrições. Desculpa-me por este comentário não ser relativo ao texto em si, mas sim aos pensamentos por detrás dele. Mas penso que neste caso era o mais apropriado.
    E sim, todos temos de ter consciência da nossa mortalidade.

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  2. Mais do que isso...é bom lembrar a vida que temos.
    Obrigada pelo comentario!

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