quarta-feira, 26 de maio de 2010

Merrow

Acendes o cachimbo, nuvens fofas e cinzentas que se soltam e fazem cócegas sob o teu nariz, mesmo antes do teu bigode. As ondas vão e vêm, marés que nunca se cansam de cantar o mesmo fado, umas vezes alegres, outras em segredo, por vezes num choro que se torna grito, fazendo coro aos trovões nos dias de tempestade. E vão e vêm, iluminadas pelo sol ou pela luz do farol, quando a noite já caiu ou o dia é de nevoeiro.
Aconchegas-te melhor no cadeirão de madeira, velho e enrugado como tu, não tivesse assistido ao passar dos anos, enfrentando o sol escaldante, a humidade, o passar do tempo e o uso de quem, como tantos nessa baía, nele encontraram repouso para os dias em que o mar não foi o caminho a seguir. Fechas os olhos por uns segundos, poderias até dormitar, embalado pelo cheiro a sal, a algas, a peixe que é tirado das redes gastas mas ainda firmes por mãos hábeis, por mãos inexperientes, rasgadas e calejadas pela vida de pescador, ou ainda macias e feridas de quem ainda aprende. Não importa. O tempo encarregar-se-á de as endurecer, de as tornar rijas. E de fazer o mesmo às suas almas.
Abres os olhos e, sem surpresas, encontra-la alguns metros à tua frente, demasiado longe para os teus olhos cansados distinguirem o padrão roçado do seu vestido mas não fazes o menor movimento para focares a tua visão. Sabes o seu destino, não é diferente de todos os outros dias, e não tarda irá estar a passos da casa caiada que chamas de lar. Caminha de forma desastrada, passos curtos, desengonçados, demasiado trôpegos para os seus cinco anos, quase seis. Passos de quem não está habituado a caminhar, passos dados por pés que não parecem ter sido feitos para andar sobre o solo, mesmo que este seja areia pálida, mais clara que qualquer outra que já tenhas visto – lágrimas cristalizadas choradas por aqueles que perderam os seus nas águas que as banham; lágrimas de quem voltou para os braços de quem amavam; lágrimas de quem as não pode voltar a pisar, enclausurados no fundo do mar; lágrimas de quem quer ficar; lágrimas de quem quer partir – passos de quem ainda está a aprender a como os dar. O seu cabelo está solto, está sempre, e uma brisa que não sentes brinca com os seus cabelos, emaranhando-os e enrolando-os em todas as direcções, indomável, perigoso, uma mancha negra que quase parece esverdeada e que se agita no ar; a sua pele, de um branco pálido, brilha sob os raios de sol, sem nunca se queimar, contrastando com o castanho- dourado dos irmãos que a seguem de longe, atentos, desconfiados, interrompendo as brincadeiras e algazarra sempre que alguém desconhecido para ela desvia o olhar. Não te prestam atenção, és como todos os outros moradores, és de confiança. És inofensivo.
Fumas o teu cachimbo e respondes com um acenar de cabeça aos seus cumprimentos respeitosos, de quem vê alguém mais sábio, mais experiente, e voltas a observá-la. Os seus olhos estão mais cinzentos hoje, um cinzento-escuro, que disfarça as manchas azuis e verdes que por vezes se sobrepõem, e sabes que uma tormenta se aproxima apesar do sol ainda brilhar e o céu estar limpo como num dia de Verão. Os barcos ainda não regressaram, talvez ainda não seja tarde demais, mas lamentas já as vidas perdidas. Saberá ela?
Os seus lábios estão entreabertos, pelo esforço e espanto, os seus pequenos braços abertos para lhe dar mais equilíbrio, para os poder girar enquanto roda e cai, com a felicidade de quem vê tudo pela primeira vez, para quem tudo é novidade e cuja curiosidade não cessa; para quem ansiou tanto por ali estar que cada segundo não pode ser desperdiçado. Passa por ti sem se demorar, as suas sardas claras, quase invisíveis, pequenos grãos de areia que pintam o seu nariz e bochechas levemente rosadas.
Assistes ao momento em que os seus pés tocam as poças de água, em que um sorriso que depois se torna num riso mudo e em exclamações silenciosas de felicidade surge, no seu rosto. Nenhum som sairá da sua boca, nenhuma palavra será pronunciada por aqueles lábios que nasceram calados, como se soubesse segredos do mundo que não poderiam ser repetidos, como se a sua voz fosse demasiado para o comum dos mortais.
Ficam ali os sete, cinco jovens, um velho e uma criança, abraçada pela água e cortejada pelas gaivotas que esvoaçam ao seu redor.
Começas a assobiar, baixo e desafinado, uma velha canção de marinheiros. O teu chapéu é levado pelo vento que surge, do nada, e um trovão estala o céu. Fala de merrows e de magia. Fala de um príncipe e de um barco; fala de uma tempestade e de um salvamento; fala de amor e de morte; fala de barbatanas brilhantes que se tornam pés; de um coração cego por intrigas e de uma torre, uma torre alta, com vista para um abismo de rochedos que lutam contra as marés. Faz-se noite antes da hora, relâmpagos iluminam os céus e as gaivotas gritam, enquanto uma criança chora, a cada lamurio um trovão, a cada soluço uma onda que rebenta, furiosa, dorida, e ao longe, muito ao longe, na Ilha para a qual já ninguém sabe o caminho, uma torre solitária recorta a paisagem.
Os irmãos esperam, abrigados sob os telhados enquanto a população corre tonta, uns para casa, outros para a praia, procurando no horizonte os que ainda não chegaram. Só, sem notar a confusão, ela treme, encharcada. Continuas a assobiar. É uma música sobre merrows. É uma música sobre o povo do mar.


Merrow - sereia

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